sexta-feira, 16 de abril de 2010

Número um - A Velha

Dona Josefa era mulher religiosa e correta. Sua cara de má, rígida e durona, nada mais era do que o resultado da soma dos anos que passou num colégio interno de freiras mal humoradas, seguido dos anos que serviu no exército.
Seu único filho era bonito demais para ser fruto duma mulher daquela. Diziam as más línguas que o rapaz era filho de uma sobrinha bastarda da velha que, por engravidar ainda menina, abandonou a criança. Mas isso pouco importava.
Os sentidos que se aguçavam quando o moço passava impedia as fofocas sobre o passado. Era alto, atlético e com olhos tão azuis como o céu. Seu sorriso era como um labirinto sem fim no qual todas elas se perdiam sem querer; e depois de estarem lá dentro, elas sempre desejavam que ele estivesse.
Era o “filhinho da mamãe”, único motivo de orgulho e felicidade da velha rabugenta com perfume de lavanda. Formado em direito, serviu o exército por um ano ou dois. Nada de defeitos: nenhum boato, nenhuma garota ele fez mãe, nenhuma briga de rua. Andava para cima e para baixo com uma moça tão estonteante como ele. Dona Josefa voltava do interior mais cedo numa tarde de quinta-feira. Ela havia passado uns dias com as irmãs na cidade natal. Com a pose afetada pela idade, a velha andava vagarosamente até o portão de casa pela calçada molhada com pedacinhos de folhas queimadas pelo sol. Abriu o portão com uma delicadeza que normalmente não tinha em seus gestos, foi até a cozinha com seus passos lentos a procura do filho. Não achou. Ouviu barulhos estranhos, temeu algo. Resolveu adentrar o corredor com sua pistola na mão esquerda. A porta no fundo do corredor estava entreaberta; era do quarto da ranzinza que vinha os ruídos questionáveis.
Abriu a porta com tamanha rapidez que recordou dos bons tempos; teve a pupila dilatada, as mãos suadas, os pelos do corpo arrepiados e a boca trêmula: o filho era homossexual – e passivo, camaradas.
Numa adrenalina vinda dum baú não mais utilizado, a velha matou o homem que estava na parte de trás do filho no susto. Matou o filho. Olhou para a última bala e deu um tiro na cabeça. Quem conta a história, é a vizinha do lado que estava na janela se excitando com a fornicada dos rapazes e acabou presenciando miolos voando pelo quarto azul turquesa da velha. A mulher no auge de seus 45 e solteirona diz: “A dona não agüentou, talvez liberdade fosse algo com a qual ela nunca soube lidar.”

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Assumir o papel, vestir a carapuça

Nunca tive o hábito de sair lendo tudo que via por onde passava e acreditei que nunca conseguiria me doutrinar a isso, mesmo que desejasse ter certa sede pela leitura.
Não sei se foi uma vontade súbita, uma necessidade ou uma colher gigante que empurrou “leitura” goela abaixo devido à circunstância na qual me encontro – pré-vestibulandos precisam ler da mesma forma como precisam respirar. Acredito que tenha sido por curiosidade, criei o hábito de escrever e agora tenho que agüentar meu perfeccionismo atuando na minha escrita. Sendo assim, passei a buscar todo tipo de leitura, para ver se absorvo a forma como “os bons” escrevem. Comecei por diversão, agora leio até rótulos do xampu no banho.
Bem, mas o assunto não é esse. A questão do dia é que uma vez perdida nesse mundo das leituras, meus olhinhos se depararam com isso:
Você sabe que virou mulher quando consegue sair com um homem e:
1- não picotar o guardanapo do restaurante
2- não fazer desenhos com pequenos pedaços de palitinhos quebrados
3- não fazer bolinhas de miolo de pão
4- não falar de ex namorados
5- não falar da mãe
6- não falar sem parar
7- não escrever um texto sobre isso

(quase!)

Foi literalmente automático, como se ao final da leitura eu lesse “D-R-O-G-A”, vindo assim, uma letrinha de cada vez, como se meu cérebro digitasse para eu ler em voz alta.
Não é justo! Fiquei questionando se vale picotar o guardanapo e quebrar os palitinhos se isso é erro de fábrica da pessoa, mania mesmo, como é o meu caso. Falar dos ex-namorados é problema se o atual é também seu amigo e já sabia do ex antes dele ser o seu atual?
E falar da mãe é pecar contra meu amadurecimento feminino mesmo se a mãe ligar na hora e o assunto vier sem querer?
Falar sem parar, falar sem parar... isso é questão de nervosismo e dessa eu me safei (espero, cruzo os dedinhos e fecho os olhos).
Mas devo deixar minha indignação maior: como não escrever sobre os relacionamentos? “Acho que nunca serei mulher”, pensei instantaneamente.
Como não nos afogarmos em palavrinhas bem boladas e tentar eternizar da maneira mais bonita tudo aquilo que toma cada pedacinho do seu corpo, do seu dia e dos seus pensamentos?
Penso que quando estou apaixonada, até durante horário político em penso em corações pirulitando.
“Não vale!”
Pedir para que eu não aflore esse lado que torna as mulheres mais mulheres, é quase impossível. Afinal, qual é a graça de ter boas experiências e não poder lembrar-se delas para sempre? Não posso me dar ao luxo de confiar na memória – principalmente na minha memória. Além disso, é na escrita que podemos ser mulheres sem fingir que não somos tão mulherzinhas assim. Já basta termos que nos mostrarmos fortes, determinadas, inabaláveis e decididas em cada cantinho do mundo. Restam só as palavras para sermos 100% nós mesmas, com tudo de mais piegas, clichê e apaixonado. É assim que somos, bem “mulherzinhas”. A sociedade impôs o resto e nós adotamos por conveniência. Mas o escape faz bem.
Então, se para ser mulher tenho que deixar de escrever sobre meus casos, acasos e amores, abro mão. Continuarei escrevendo, fazendo o que nós, mulheres, fazemos melhor: sermos mulheres (de verdade).

sábado, 3 de abril de 2010

Para falar dos detalhes que ainda não contei – Parte II

Ela, aos poucos, começou a ansiar pelas noites na frente da tela, pela janelinha que subia no cantinho do lado direito. O modo de dizer “olá” sempre carinhoso e fácil, agradável aos olhos e aos dentes que não se continham escondidos atrás dos lábios. Era diferente; diferente dos indiferentes que a cercam no dia-a-dia. Engraçado, autêntico, sutil e com boas músicas para somar ao “top 100” dela. Cada vez mais surpresa ela ficava; cada dia um sorriso a mais arrancado com o jeito divertido, curioso e inteligente daquele rapaz escrever. Poderia ficar ali trocando dígitos por horas, descobrindo devagar os milhares de pontos em comum. Hábitos estranhos para a idade faziam parte do mundo dele como faziam do dela: o jogo de buraco, a pipoca doce, o sorvete com bolo, o café com biscoitos e uma mania incontrolável de escrever e pensar sobre tudo.
Tornou-se parte fundamental do dia, muita informação em pouco tempo. Vontade de contar da vida, “abrir o coração” sem medo, pedir ajuda ou conselho. Sem esforço algum ela conseguia ser real com ele, sem fingir, sendo apenas o que era, nem mais, nem menos, e só.
Ela não entendia tamanha conexão, mas ainda não se focava nisso. O foco ainda era bege e sem graça.
Um convite para um almoço no dia seguinte, antes de uma prova de física às duas.
Era uma quinta qualquer, um dia qualquer e um nervosismo pré-prova-de-física qualquer.
Terminou a aula, ela temeu que ele pudesse ter se esquecido do que haviam combinado na noite anterior. Ela tinha medo de que as palavras não fluíssem ao vivo como fluíam no virtual. O som, não mais a leitura...
Ele não se esqueceu; eles foram até a padaria e compraram o sanduíche. Assentaram na escadaria de uma academia que ficava ao lado. O papo esteve agradável como sempre, e mesmo com uma timidez levemente disfarçada, ela soube como deixar fluir aquelas horas por ali.
Meiaram fones e telefones; música e um SMS que ela riu e não entendeu.
Com o fim do horário de almoço, não poderia ser diferente, mas ainda assim foi surpreendente, o rapaz teve a gentileza de levá-la até o local da prova.
Ela fez a prova com tanta calma que, até hoje não sabe como, fechou a prova de física.